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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

e além de tudo me deixou mudo um violão - (ou música serve pra isso)




Pensa então numa boa combinação de Beatles, Chico Buarque, Riachão, Os Mulheres Negras, São Paulo, um olhar adolescente, ruas, problemas familiares, força e delicadeza? Conseguiu vislumbrar o que poderia amalgamar tudo isso? Sim. Um violão. Escondido, esquecido e empoeirado. 








"E além de tudo me deixou mudo um violão (While My Guitar Gently Weeps) é um telefilme, lançado ano passado pela TV Cultura, na quarta edição do projeto da emissora que teve como tema "A Música na Cidade". Dirigido por Anna Muylaert (de "É Proibido Fumar"), o filme nos conta a história de Erica, filha d'A Rita. A adolescente mora com a mãe, numa relação difícil, em que uma fala inglês a outra responde em português. Situação explicitada já no começo do filme: a bolha da mãe na casa de amigos, bebendo e contando piadas sobre a rainha, na língua anglo-saxã. Para chamar a atenção da mãe, Erica se solta numa piscina. Assim será por todo o filme, a mãe se atenta para Erica, pralém do abismo de seu alcoolismo, quando percebe a filha se divertindo com a música alta, ou, pior ainda, quando ouve saindo do seu quarto o barulho de um violão.

Chico Buarque e Beatles estão nas entrelinhas, se costurando nas mais possíveis combinações entre um e outro. Erica encontra na lavanderia - sim, com o alcoolismo da mãe ela tem de cuidar de si, passando pelas compras de casa e feitura do almoço - empoeirado um violão com a inscrição "LovelyRita". E na cabeça de cada telespectador passa um filme próprio: imaginar o músico brasileiro, que toca violão, que gosta de Beatles e conhece uma garota de nome Rita. E inglesa. E adorável. Nome de música. Sabe? sabe sim... gente bota música em tudo - canção pra tudo - ainda mais no Brasil... e... sabe aquele sensação gostosa estar vivendo um trecho da canção que gosta? Vida-arte e vice versa? 
Quando a gente fica besta de ver passar num lugar cantado numa canção - digo por mim que toda vez que vejo a placa "Vila Ipojuca" meu coração dispara e minha cabeça Trovoa, graças ao Maurício Pereira.

Pouco comentado nas boas quando não protocolares críticas do filme é o fato da trilha sonora ser feita pel'Os Mulheres Negras: a terceira menor big band do mundo, formada por dois homens brancos, que fez música nos meados da década de 80 misturando equipamentos eletrônicos, guitarra, saxofone, letras irreverentes, diversos estilos músicas, bossa-nova-beatles, humor, piada, versões, escrachos e a percepção de que de tudo se faz música e de que não tem regra do que é, do que pode ou não. -
  "Profissão de fé d'Os Mulheres Negras: tudo é música boa e tudo é influência. E ponto final". - nas palavras de Maurício Pereira. 
Pra não ser perder no leque de conexões, "Lovely Rita" tá no álbum Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band, revolucionário e inovador nas técnicas de gravação, experimentação - : 

"Em treze canções levam ao limite o conceito do rock, agregando orquestrações, instrumentos hindus, gravações tocadas ao revés e sons de animais. Rockmusic hallbaladasjazze até música oriental se mesclam em Sgt. Pepper."  - e viva a wikipedia.
parece que na gravação de Lovely Rita usaram até pente e papel pra produção de efeitos sonoros
Experimentações e misturas: Beatles
Experimentações e misturas: Os Mulheres Negras.


Música serve pra isso - nome de álbum d'Os Mulheres, de música e de filme. "E além de tudo me deixou mudo um violão" parece que é o par ficcional da canção que conta:


"Que o mundo é tão variado / Tanta exclamação que às vezes / Não se nota que é constante / Que uma banalidade / Gere uma canção gigante"

Voltando dos devaneios pra narrativa do filme, Erica se diverte com os amigos em Barueri ao som de Imbarueri, com Maurício Pereira dizendo:


  "Onde a felicidade amarra o sapato. 
Imbarueri é do lado do lugar comum."



Após o encontro com o violão- velho, quebrado, empoeirado "Lovely Rita", o pai de Erica a incentiva a tocar e é o Maurício Pereira quem interpreta o delicioso vendedor de instrumentos musicais de um loja da Teodoro. V O tema é música na cidade, lembra? A cidade é São Paulo. A rua não podia ser outra. A Teodoro. Com seus vendedores que são músicos, trabalhadores. Gente que sabe o que tá vendendo, pra quem, pra que. Gente que em muitos dos casos queria mesmo era ser consumidor das peças sofisticadas e caras. Músico. Maurício. Na memória afetiva de quem ouviu "Um dia útil", as fronteiras entre personagem e ator se mesclam. Não. Não sei  - e acho que não - se o Pereirão já foi vendedor em loja de música, mas músico, de ofício, de trabalho, de cuidado, isso sim - não tem dúvida não. 


"e amanhã é mais um grande dia/ um dia comum de muito trabalho/ um dia grande / que nem um diamante / um longo dia belo / um baita dia duro e lindo / eu ganho pra estar brilhante / num dia útil"



O professor de Erica é um amigo das antigas do pai, "aquele gordo", interpretado pelo outro Mulheres, é claro, André Abujamra. E ele dá aula onde? É ali. Numa travessa da Teodoro - de pequenas portas e anúncios.

E aí é que são elas... com toda essa música sugerida, o que Erica quer tocar?

"Cada Macaco No Seu Galho". A música que ela ouve, na versão de Gil e Caetano, no último volume no seu quarto, seu galho, seu espaço, enquanto dança, se solta, se sente, flutua. Pra temperar a mistura desse roteiro, a canção é de um sambista de 92 anos, vivinho da Silva, Riachão, mesmo compositor de "Vá Morar com o Diabo" - imortalizada na voz de Cássia Eller.

As cordas do violão azul de Erica ressoam as dores da mãe. A fúria d'A Rita deixa mudo seu violão. É a Gota D'Água. Ah... Lovely Rita. Dor. Choro. Berro. Gente pequena que fica grande. Comprar o vinho. Roubar o vinho, chorar. Aguentar as pontas. Segurar o rochão. Explodir a verdade. Viver.

recomeçar. 

É a voz de Erica quem dá a trilha da deliciosa tomada dela, subindo a Teodoro com violão nas costas, entre as cores dos muros, das pessoas e dos ônibus, bem são-paulo.

"eu queria aprender pra tocar pra minha mãe."

"é. qual que é?"

A versão d'Os Mulheres d'A Rita do Chico é o filme em canção.  O vazio, o estouro, o samba, os Beatles, a sutileza, a singularidade d'Os Mulheres, anjos guardiães dessa história, com música por toda parte, porque assim ela está. Mais que compositores da trilha, Os Mulheres Negras partilham da proposta do roteiro, do tema explicitado, tratando de algo que lhes é tão caro. a presença da música na banalidade, no corriqueiro, como também nos ditos grandes momentos. Os Mulheres Negras contemplando essa presença cantada ou sugerida de canção por toda parte, como parte da vida. Transpira. Na vida e/da cidade.




[em resumo:
assistam ao filme. é delicioso.
e se você não conhece Os Mulheres Negras, não sabe o que tá perdendo.]