Páginas

sábado, 24 de maio de 2014

do cheiro de merda ao medo da multidão

Pra quem precisa de 'argumento de autoridade', segue um vídeo didático da TVFolha guiado pelos comentários do Kfouri que esteve presente no largo da batata quinta-feira, quando da manifestação "Copa sem povo, tô na rua de novo", com a presença massiva do MTST.
<http://www1.folha.uol.com.br/multimidia/videocasts/2014/05/1458806-kfouri-protesto-de-sem-teto-contra-gastanca-da-copa-e-legitimo-assista.shtml>

Toda vez que em alguma manifestação eu ouço o pedido de "mais segurança" eu acho a coisa mais abstrata e perigosa de todas: estar seguro contra o quê? Giorgio Agambem nesse texto aqui ó <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1568> pontua muito bem essa questão. De quem, do que estamos querendo nos defender? 

Muita gente já viu (http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/mtst-responde-ticiane-pinheiro-201cpra-que-discutir-com-madame-201d-2181.html) a montagem feita que ironiza a fala de Ticiane Pinheiro no seu tweet parada no congestionamento ocasionado pela manifestação. Ela usa palavras como "insegurança, impotência, medo, vergonha"... Ao lado uma foto dela em seu closet e abaixo a foto de uma ocupação do MTST. - tá literalmente desenhada à diferença social e a perspectiva ideológica, de classe.
Ela sente medo de trabalhadores que não têm onde dormir numa cidade que possui um número de imóveis abandonados e/ou vazios duas vezes maior que a quantidade de pessoas que ocupavam aquelas ruas.
A montagem, como infelizmente eu li nos comentários, não traduz 'inveja' pelo guarda-roupa da madame. Mas os lugares de fala/ato das pessoas.



No momento em que "tudo causa revolta", estar indignado, pedir a cabeça da presidente, descer o nível e xingar, bradar em memes da TV Revolta, nada disso diz muita coisa. A fúria cega lincha inocentes, enche a gente de amargura e um ódio, esse sim, impotente. Nos afasta da nossa humanidade. No momento de indignação no estado atual das coisas, parar, ouvir, meditar sobre as mediações, processos que fazem com a situação seja essa... a compreensão e a disposição à mudança estrutural, em atos, mais do que um brado mimado e terceirizado de quem não se sabe perdendo a humanidade pouco a pouco.

E em tempo, nessa brisa imensa, ironicamente nessa segunda-feira assistindo ao CQC, eu senti uma empatia pela Ticiane, incontida: ela foi vítima do quadro TOP Five, ao ser totalmente ironizada, achincalhada por ter explicitado em rede nacional que seu afeto por seu bebê é tanto, que por vezes sentia falta do cheiro do seu cocô, que para ela era como perfume. Ela foi terrivelmente agredida simbolicamente por ter expressado seu afeto. Eu, daqui do meu canto, estudiosa do realismo grotesco, da ligação orgânica com o nosso corpo, achei de uma sutileza plena e uma fresta de negação - que ela nem cogita ter feito - com o céptico e fechado corpo burguês. O humor do CQC que só rebaixa, acusa, aponta o dedo e mal sabe rir de si mesmo, semeou essa chacota agressiva.
É... Existir é qualquer coisa, viu?

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Cultura Ordinária - ou a cultura é de todos

Dez anos depois, eu participei pela primeira de um dos maiores eventos culturais da América Latina: a virada cultural na capital paulista. E com vários plus: depois de morar aqui por pouco mais de um ano e um tanto quanto menos perdida na hora de fazer os itinerários e enfrentar metrôs e caminhadas; em pleno ano de Copa do Mundo, com a cidade preparada pra receber a gringaiada; e um tanto quanto mais ciente dos processos de produção cultural da cidade e tudo aquilo que a gente sabe por intuição, porque afinal de contas a cultura é de todos.

E começo assim porque pra essa brisa, eu chamo pra prosa o tão do Raimundão Guilhermino (raymond williams) que certa vez brisou sobre cultura a partir do seu repertório cultural inglês: bem, nesse final de semana, a mineira do Sul de Minas, lá das Três Pontas, quase uma Araraquarense (araraquariana) passeou numa boa pela chuva de granizo paulistana que nem os novos baianos.

Se já foram passados 10 anos, é claro que há todo o pessimismo quanto à virada: 'a cidade tá lotada', 'a galera fica muito bêbada', 'rola arrastão', 'você se cansa e não consegue ver tudo', 'os palcos ficam muito lotados', numa argumentação que leva a um 'não vale a pena'. Mas eu resolvi abstrair e munida de boa companhia, fui à saga:

a pré-para-ação era dar uma olhadinha no GoogleMaps pra traduzir em caminhadas reais os nomes dos palcos onde ecoavam as promessas de bom show, mas nada que o bom Mapa da Virada não proporcionasse em cores, com o nome de todas as atrações de todos os palcos, Centros Culturais, CEUs e Sescs.

Afinal de contas a gente volta ao tópico um: pralém de localizar bem os próprios paulistanos, eventuais brazucas que se aventuram na paulicéia, esse guia lindo e colorido bota no mapa lugares que estão prontos para receber turista: essa foi a minha sensação plena e nítida ao adentrar, por exemplo, o Mercado Municipal de São Paulo - todas aquelas cores, atendentes sorridentes, frutas, cadeiras, artesanato, tudo limpo, claro, aquela arquitetura imponente que me levou num passe-de-mágica as grandes construções da velha Inglaterra. Lembrei do pedaço de um programa da Globo, desses que as pessoas cozinham, mostrando uma compra feita no Mercado. De fato ali um monte de coisa boa: meus amigos e eu fomos ao delírio em cores ao comer uma salada de frutas por uma bagatela de 4reais que tinha desde goiaba, morango, manga à exótica pitaya, sentados nos carrinhos do lado de fora do Mercado: a vista era de uma São Paulo cinza, carros, viadutos 'se tivesse água, aqui seria um porto, pensei' - ao longe, ali à frente, casas coloridas 'é a zona cerealista', contou o Puncha.

Caminhar do Theatro Municipal até ali em busca de um forró foi andar por uma São Paulo que me lembrava Belo Horizonte e os lugares por onde me acostumei andar desde pequena em segurança e guiada pela mão de minha mãe: o que mais me assustava não eram as muitas pessoas nas ruas, mas a quantidade de PMs na rua me agoniava. Eles transitando numa normalidade hipócrita: os lugares de sociabilidade daquilo que eles dizem censurar estavam ali, intactos dependendo de quem fazia o quê: dizendo em bom português, os palcos e agrupamentos culturais estavam - como sempre - 'legalaize'. MUITA Polícia.


Eu fui pra virada sem muita noção do que fazer porque sou PÉSSIMA pra fazer escolhas, mas com algumas intuições e eis que as andanças - o que deu certo e o que não deu, como por exemplo, esquecer e/ou abstrair que o SESC distribuiria todas os ingressos às 17h e não uma hora antes como no Theatro Municipal, me fez não assistir ao Siba e a Fuloresta, mas dar um rolê pelo Largo da Batata :) Ahhh como eu gosto daquele canto ali, deusdocéu!

"Havia o Bar do João, agora tem uma estação" - canta sempre o Rodrigo Campos pra mim nessa hora.

Uma coisa que me seduz é a maneira como as pessoas viram na virada, as pessoas mesmo, da cidade, ali, sua rotina... é. gente gente de verdade. Não havia um Palco da Virada no Largo da Batata, no máaaximo a vibe Maracatu Manguebeat rolando solta no Sesc Pinheiros - e quanta gente de axé e maravilinda eu vi nos 5 minutos que fiquei por lá... Mas ainda assim, quanta gente, quanta cor e quanto som ali!!!
Muita muita muita música ao vivo. Bares cheios de gente com suas histórias: aquele pedacim no meu imaginário romântico é meu pedacim de "vou rifar meu coração"


Enfim, voltando, das andanças todas, a virada me proporcionou ouvir 4 álbuns tocados ao vivo:

na dúvida imensa do que fazer pra começar e saindo de um lançamento de livro e tal e coisa fui parar - pra ser bem previsível pra grande parte dos meus amigos - no palco da Barão de Limeira pra ouvir dona Juçara Marçal, com o show do álbum ENCARNADO - sem dúvida um dos álbuns que bota 2014 na história.


Arte de Kiko Dinucci pra capa do álbum - ouça aqui ó https://www.youtube.com/watch?v=18p5_PiPk8E
Lá estavam no palco do reagge contrariando a lógica da coisa sem nem um baixo ou um instrumento percussivo: foi ao som de Velho Amarelo -  uma das melhores músicas do Século XXI fácil, rs - que as atividades se iniciaram pontualmente no palco da Barão de Limeira. E lá no palco contrariando uma outra lógica - como por exemplo a do show do Otto que eu veria depois: a cantora fica do lado esquerdo de quem olha do palco, num canto e na mesma linha, NA MESMA LINHA, de igual pra igual, os seus três parceiros de barulho: Thomas Rohrer, Rodrigo Campos e Kiko Dinucci.

No show do Otto no palco da Rio Branco - que se chamava VINIL por sinal, já que ali todos os shows seriam tributos a álbuns clássicos, fazendo eco a um projeto da Radiola Urbana  -, no show do moço que é o sex appeal em pessoa eu sabia que o Rodrigo Campos estava lá porque ele havia participado do show dele no Sesc pra esse projeto e porque vez ou outra Otto falava o nome dele, porque ele ficou escondido num nivel abaixo exatamente atrás do Otto. - não digo que isso tenha sido feito de propósito - jamais! só digo, que isso tem a ver com um cuidado que não foi desprezado na formação anterior e que diz MUITO sobre o modo como essa galera que é amiga, truta mesmo, um bando, como eles se cuidam e fazem música juntos.

Não à toa foi na plateia do show da Juçara que dei um abraço apertado na Anna Zepa, Marcelo Cabral e Romulo e foi no show dele que eu vi a cantora linda maravilhosa linda na plateia curtindo... enfim.

Mas Otto porra... é o OTTO com toda aquela simpatia, swing... falando as vezes demais, mas cantando nada mais nada menos do que esse álbum maravilindo que é o CANTA CANTA MINHA GENTE, do Martinho da Vila, que completa quarenta anos - e que continua absurdamente lindo, ousado e subversivo:



E subversivo mesmo! Se a gente pensa que foi nessa semana que o juiz do Tribunal Federal que nos contou que as "crenças de matriz afro não são religião", o seu Otto fazer a gente dançar um bom e velho batuque evocando a obra do Martinho é qualquer coisa. E Otto lembrou o episódio, assim como nas suas palavras apaixonadas ao fim do show: DELISGUEM  A TELEVISÃO! DESLIGUEM A TV! NÃO TENHAM MEDO!!!!
E aí eu penso que justamente por podermos dançar pros nossos santos ali num show, numa madrugada regada à fumaça e gorós - e a fins - em plena rua, com som alto falante, no meio de desconhecidos que uma "crença" como essa assusta tanto essa galera... como isso pode ser parte de uma RELIGIÃO? Ai gente... vários poderiam ser os argumentos lógicos, antropológicos e científicos, mas vamos no clichê de que religião vem de RELIGAR? Ligar-se ao seu santo com dança e canto já é por si argumento, certo?

E pra quem tava super querendo varar a madrugada, o encontro maravilindo com velhos e bons amigos me leva de volta pra casa logo após o Otto, pro descanso que no outro dia era levantar cedo pra ver a dona ELZA SOARES!

Um dos álbuns mais lindos que descobri ano passado se chama "A BOSSA NEGRA de Elza Soares" e vejam bem se ela não iria cantar justamente esse?!



O show foi no pomposo Theatro Municipal que muitas vezes a gente sabe que é lindo por fora, mas nunca entrou e se sentou naquele estofado vermelho. Valeu a pena fica mais de uma hora na fila. Aquela senhora com 8 parafusos na coluna que não para na cadeira e que canta canta canta conta cousa e nos diverte... aquela senhora toda brilhante, cabeleira farta, que brinca com a voz e com todos os instrumentistas que a acompanham... que deixa o seu maestro louco assim como o técnico de PA... aquela mulher que contou sem falsa modéstia que foi considerada a Cantora do Milênio... aquela... é... ela estava ali, plena em seu ofício e nos fez absurdamente feliz.
Ouçam esse disco: com essa capa pensada por Ronaldo Bôscoli, como ela mesma conta, nessa pose de Sarah Vaughan, nessa tentativa de enquadrar a mulher no rótulo BOSSA-JAZZ do qual ela comunga mas sempre ultrapassou  - sem demérito pra nenhuma das duas 'classificações'. Ouçam esse repertório delicioso... mas pensem que ao vivo foi qualquer coisa de lindo. Sem falsa nostalgia, releituras, brincadeiras. Ali, um álbum encarnado num canto que rasga fundo. Que benção poder ouvir essa mulher!

A travessura de pular as cadeiras do Municipal - e levar uma bronca por isso - pra correr para o show que acabara de começar de Rômulo Fróes cantando o TRANSA (Caetano Veloso, 1972), com toda a trupe, na real estava me levando para o último show que assisti da virada.

E era óbvio que eu estaria ali, como duvidei?

Esse show aconteceu pela primeira vez se não me falha a memória em junho de 2012. Eu estava em Araraquara ainda e já estava super interessada no som que esses meninos PASSO TORTO estavam fazendo aqui na paulicéia, e o TRANSA foi disparado o álbum que mais ouvi em 2010 e que me marcou para caramba! Logo, eu fiquei alucinada pra ver esse show e não vi.  - e não é mistério pra ninguém que minha mudança pra SP tem dentre várias variáveis seguir os rastros sonoros dessa galera aí.

Com o sol na cara, pinga boa na cabeça, eu delirei com a progressividade que o álbum ganhou nas cordas dos meninos e no som melancólico do canto de Rômulo. Eu já sabia que encontraria uma recriação - assim como seria e foi quando parte dessa galera releu os afro-sambas. Eles sabem que se você tá falando uma mesma coisa já tá dizendo outra - então dizem mesmo do jeito deles, com as cores deles, outras.
E como falam.




Mas foi ali também, durante o show deles que vivi uma das cenas mais bizarras de toda a virada: um homem baixinho, com uma fisionomia meio indígena sulatinamericana - sei lá seu se boliviano, venezuelano - com um capacete de trabalhador de construção civil, com uma água lhe saindo pela boca que molharam sua camiseta, parou diante de nós 3 e ao sentir meu corpo se retrair, porque ele responde com nossas sombras, feiuras e preconceitos bem antes da gente cogitar usar o intelecto - ele disse simplesmente: "eu sou um trabalhador e quero conhecer vocês" e mostrou suas mãos...  - e aí me lembro de Antonio Candido contando sobre Vinicius de Moraes que lhe escreveu que 'estendo os braços para a amizade'

E aí eu o olhava de frente como um igual, mas com aquele nó na garganta da situação de humanidade que ali se colocava 'cidadão nunca vai ser igual...'  sorrir? conversar? como lidar? simplesmente? os meninos respoderam e eu só conseguia olhar pra nossa pequeneza, pra nossa contradição explícita... lembrar do predio ocupado do MTST do lado do paço das artes, dos corpos que dormiam no chão, nas pessoas pedindo, nos turistas, nos shows, em tud junto e misturado. no nosso ódio, no nosso medo, na distância invisível que criamos entre nós mesmos... e ouvia ele dizer agora "i'm a brazilian worker" e depois ir embora.

Ele que vai saber onde estava quando Iansã trouxe o temporal e chuva de granizo pra São Paulo me impedindo de ver a dona Céu cantar o seu Bob Marley. Muita muita água. Água tão pedida... tão esperada que caía e maltratava junto com vento frio... a água que bota às vistas a sujeira do centro que alaga e inunda todos os dias gente que a gente quer invisível pra não fazer doer as nossas dores.

Dali, corremos pro metrô, como todo mundo, alagados. E o metrô lotado, gente pra todo lado e ao chegar perto da catraca da cidade que facilmente vira o caos do caos, o colete preto do funcionário do metrô anunciava:

TRANSPORTE PADRÃO FIFA - Campanha de ajuste salarial

a mensagem não podia ser mais clara.



EM TEMPO, ao procurar fotos pra ilustrar a chuva de granizo em SP, eu encontrei UM MONTE DE FOTOS DA VALESCA POPOZUDA! :)


Descobri e sorrio que ela fez seu show mesmo com o temporal e o granizo. - eu teria me divertido!! Que bom que teve gente que sim! 



Isso sim me arrancou agora um riso grande à beça e faz juz ao nome super pomposo desse post: a cultura é de todos. CULTURA mesmo, modo de vida, tudo que a gente objetiva e subjetiva... pralém e também dos palcos das oficialidades. Essa cultura que impera no não-palco da vida. pra todo mundo. sempre.

 - não baixa a guarda, moçada, que a luta não acabou.

sábado, 17 de maio de 2014

desaniversário.



alguns antonios vivos e mortos falam da língua, da terra, da arte
algumas notas se soletram, se encantam, se contam
pelos brancos, poeira arrastada, velhas canções estreiando em minh'alma
plumas coloridas, engasgos
latitudes dos mapas dos afetos
saudades esparsas, pirlimpimpins
meu coração safado escapa
pula por cima da razão e me espera do outro lado do muro, do rio
na terceira margem.
cartas, vazios de estômago e de intenção
pés limpos da sujeira que vai embora.
viro que viro me viro em toda brisa.



Restos de Orvalho - Martha Barros






[a promessa era a absolvição plena de todas as minhas ideias. deixar de ser túmulo de sonhos bonitos.
a promessa era os delírios de um quadro da Martha Barros e um gole a mais da poesia de seu pai nos traços dos dias. o brisas da isa aniversariou-se e de presente de aniversário me dou o presente generoso de não perder a fé nessas coisas todas que me passam, nesse canto que rasgo no mundo, nessas palavras que eu vou combinando com as minhas vivências, meus não ditos, esses rabiscos e rascunhos de quem procura seu lugar em si mesma, sendo invadida a todo o tempo, por todas as frestas, pelo vento forte de quem ama.]