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quinta-feira, 31 de julho de 2014

joão e maria

"no tempo da maldade 
acho que a gente nem
tinha nascido"


Nus e meninos
Do mar da vontade
Correm soltos
Atiçam fogueiras
Ardem
Meninos
Do desejo
Não perguntam
Não esperam:
Dizem em letras graúdas.
Corpos são extensões
Do mundo
Que é todo brincadeira
Picadeiro
Brinquedo
Formam as palavras 
Soltas
Que cultivam por ai
Posso brincar em você?
Encadear trava línguas
Meia noite, meia luz, meia lua
Lua inteira
Virar maré cheia?
Ser teu trampolim?
Promete que não me conta, 
Não me desconta,
Não me censura a fissura?
Promete que não responde 
todas as perguntas
E nem deixa de fazê-las?
Promete que não me promete nada?
Que eu juro que não esqueço. 
- até cruzo os dedos.


(em parceria com gabriel kieling)





Akira Kurosawa

segunda-feira, 14 de julho de 2014

'despertem'

A onda celeste era já uma ressaca. No centro de Buenos Aires,  coisa de uma da manhã, rostos cansados enchiam pontos de ônibus,  papéis picados cobrindo o chão,  se perdendo entre as folhas secas de inverno. A lanchonete 24h abrigava os famintos,  estampava caricatutas dos ícones pop do país. No balcão um homem de mochila aberta, barba na cara tentava vender uma máquina registradora de décadas atrás - era uma coisa, com botões, bem enformada... lia-se em seus olhos. Valor de uso, valor de troca, misturas de apreço,   necessidade, utilidades e desejos.
Finalmente chega o lanche do companheiro de madrugada. Entre uma mordida e outra e falas descompassadas em portulhano, eis que uma voz sobressaia.
Ele tinha pintadas na cara bandeiras nacionais, a espinha reta e uma voz que não cansa de chamar. De uma lucidez inebriante ele pedia, olhando nos olhos de todos: "despertem".

Se dirigia ao homem vestido sei-lá-eu se de segurança-policial e pedia "você que é uma autoridade me explique,  porque eu não entendo."

Aos poucos liguei sua fala ao que vi na TV do hostel horas antes: repressão policial no centro de Buenos Aires.  Cenas fortíssimas.  A mesma TV que não tem problemas em exibir no momento de maior audiência, intervalo da final, a feitura de mais de mil casamentos homoafetivos, não tem pudor em mostrar a truculência da sua própria polícia.

"Era uma momento de festa. Eu beijava minha menina, um beijo longo de cinco minutos. Havia uma mulher com uma criança de colo e eles simplesmente chegaram e nos baterem. Vi uma criança com sangue na cara."

A Argentina há muito não ia pra uma final. Uma multidão caminhava pelas ruas ontem, quando o sol da bandeira iluminava o centro. Portas cerradas protegiam os cafés da multidão sedenta que não encontrava telão pelas ruas pra ver os dribles do Messi. Não se passava incólume pelo telão imenso digital de frente pro Obelisco, ali, na Corrientes y 9 de Julho, que projetava a Coca Cola grande grande patrocinadora de uma alegria que ali, ela era incapaz de proporcionar.

Correndo contra a multidão pelas ruas, de volta ao abrigo do hostel,  para gritar escandalosamente como bons brasileiros,  já sabíamos de cor a parodia da canção de Creedence: é.  O grito de guerra deles é uma boa zoação com a nossa cara. - e que confesso que me irritava menos, bem menos, do que o "eeeeeeeeu sou brasileeeeeeeeiro".

Na fala daquele homem, indignado por apanhar durante uma festa popular nas ruas, eu encontrei mais uma vez mais proximidades do que as richas tão bem alimentadas pelo hábito e pela estupidez: a truculência da repressão policial, um verme que passa por todas as veias abertas da latino América, arregaçadas.  Uma latino América que pouco sabe de si, criada para saber mais de Hollywood do que seu próprio cinema.
Aliás,  perdão.  Aqui eu me lembro de uma conversa com um colombiano, que tem uma expulsão por militância estudantil da universidade pública - contra o desmonte da educação - , num hostel em Montevideo,  sobre o nosso desconhecer mútuo.

"O que você vai levar dessa viagem?" Me perguntou meu novo amigo, que com a voz embargada me mostrava a rua onde morreram 20 pessoas em 2001, falando das lutas, das multidões...

Eu levo meu sangue latino. E a lembrança do pedido daquele homem "despertem".


terça-feira, 1 de julho de 2014

argentina: você na cabeça.

fui pra Argentina escondida da minha mãe. é. ela jurou que estava em Barra do Una. Com alguns putos no bolso, bem acompanhada, com violão e muita reza, encaramos estradas, dormimos em postos de gasolina, recebemos ajuda, cruzamos fronteira.
E mítico... como o primeiro lugar em que passamos uma noite em território argentino após cruzar o caos da babilônia paraguaia e toda a sua tranqueira pelas ruas, se chamava nada menos que Eldorado. é. Eldorado como o paraíso do Cândido, de Voltaire. é. ganhamos frutas bonitas de uma brasileira no primeiro lugar que paramos pra pedir informação, fomos parar num parque público, recebidos por um velho cuidador de um museu, que nos deu mate e teto.
Argentina nos abraçou. e me lembro bem de que foi um janeiro em que ela abraçou vários de nós: lazinho, chester, mery, dj, angelinda e tadeus. muitos desses se encantaram foi lá pros lados de Mendoza. - que dizem daquelas frutas e daqueles campos...
Nós não. Fomos até BuenosAires e voltamos. Como atingir o pico da montanha e descê-la em seguida. A melhor lembrança da capital foi como adentramos suas fronteiras num domingo-fim-de-tarde: congestionados os postos de pedágios se renderam às buzinas insuportáveis e ininterruptas de todos aqueles veículos e abriram suas cancelas... ah! o poder do coletivo...
mas não. a melhor lembrança foi sacar que garota de ipanema até atrai gringo na rodoviária, mas na praça da cidade o que se quer saber é de lembrar dos mortos, celebrar a vida e não deixar de lutar.
a memória arde na pele e no canto. E foi num Trem Azul - olha que ironia - à caminho de casa, em algum momento das mais de 24horas que passamos na parte mais barata dos vagões, se deliciando com as
maravilhas caseiras, vendidas por famílias a cada vilarejo de parada, foi ali, num Trem Azul que conhecemos um casal, que como nós, tinha a música como algo em comum. Cantamos a eles nossas canções e ouvimos as deles. Canções belíssimas sobre memória e luta, como quem faz uma balada-de-amor-qualquer-mela-cueca. assim. simples.
Eles se mostraram de uma felicidade incrível em saber-nos brasileiros e disseram que gostavam da música "mas não do sertanejo" - como pudemos percebê-lo popular entre os motoristas de caminhão...
mas os olhos brilhavam ao falar de Caetano Veloso, Marisa Monte...

Lembro como se fosse hoje que cantar Velha Infância e Sozinho - na versão Caê - nunca tinha sido tão cheio de sentido e com tanta beleza. Aqueles olhos brilhantes ouvindo aquilo deixam a gente cheio de inspiração. Assim, entre um vagão e outro, com sol e vento na cara.

E ai... não me venham então dizer pra não torcer pela Argentina. Faz favor, vai? Não digo nem por conta do futebol, mas sabe? não tenho motivo algum pra implicar com aquela gente. aliás, eu só aprendi com cada uma das pessoas que cruzei por lá, mesmo nos momentos mais angustiantes - Santo Thomé que o diga.
Sabe? Simpatizo com essa gente que tá tão perto - e ao mesmo tempo, de tantas formas diferentes - tão longe da gente.