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domingo, 29 de novembro de 2015

grande trampo no palco




eu tinha pouco mais de 14 anos quando me disseram que eu deveria cantar "The great gig in the sky". como era um projeto em família, a coisa  - com todo o meu drama canceriano e revolta aquariana - parece sempre bem menos democrática quando eu conto. mas a verdade é que me botaram o desafio e eu topei. - seja por gostar de palco, seja por gostar de música, seja por gostar de desafio.
eu não tinha - e isso tá longe de ser falsa modéstia - a menor condição de fazer aquilo. não tinha técnica vocal. não conseguia atingir aqueles agudos todos, sem berrar, muito e alto e mal. - exagero? basta perguntar pra quem esteve lá no dia 28 de setembro de 2002, no centro cultural. - vi do palco algumas pessoas rindo.

o fato é que não é simples e nem fácil mesmo cantar o que a sagitariana Clare Torry fez dentro do estúdio sobre a base maravilhosa de Richard Wright.

o tema da música é extremamente forte. a expressão vocal dela ultrapassa a mera técnica, mas é sim constituída de muita. o que aparenta ser um mero grito de alguém com medo de morrer, pensando em pânico, dor e morte, é um solo vocal que demostra muito domínio técnico. domínio sobre o que se coloca pra fora.

levar isso pro palco é ter em conta tudo isso.

sim. 13 anos depois o status mudo um tanto - e aí não vou mesmo apelar pra uma falsa modéstia. ainda que esteja bem longe do que Clare faz, hoje consigo gostar do que faço quando ouço os acordes de The Great Gig in The Sky e chega a minha vez de encarar o público extremamente crítico e fanático do Ummagumma, que na verdade, é o público do Pink Floyd.

dois momentos foram fundamentais e estão comigo no palco toda vez que canto

1 - ainda nos primeiros da banda, fizemos uma apresentação em São Tomé das Letras. um amigo meu esteve e veio conversar comigo que achou a performance bem comedida e que aquilo não combinava com a música. que era necessário levar tesão pro palco. ou, como diria anos depois outra grande amiga, cantar com a perereca. e isso fez e faz toda a diferença.
morte e vida
prazer e horror
gozo e choro
estão em vizinhança e se misturam na vida, no espamo, no grito.
durante algum tempo foi o que salvou.

2 - durante a faculdade toquei em barzinhos pra levantar uma grana. foi um momento de muito aprendizado. o repertório era basicamente música brasileira anos 60 e 70. muita, muita, mas muita bossa nova. por incrível que pareça cantar "the great gig in the sky" ficou muito melhor depois disso.
o controle vocal que exige o canto da bossa nova me muniu de um auto-conhecimento da minha própria voz que foram fundamentais para começar a interpretar melhor "great gig".
a partir daí, a coisa mudou de figura.

durante algum tempo eu optei pela versão do Pulse. é mais fácil pra mim ainda hoje seguir uma linha vocal já conhecida do que simplesmente fazer um improviso vocal. - até porque, floydianos que vão a um show tributo procuram ouvir coisas que o remetam às gravações já conhecidas. poucos estão dispostos à inovação nos arranjos.
a versão do Pulse tem a primeira parte mais "fácil" de cantar, por não atingir notas tão agudas. e beneficia também a parte agressiva.

de uns tempos pra cá tenho me aventurado na versão original, baseada na aniversariante do dia, a sagitariana Clare Torry.

muitas das pessoas que vão aos shows ou que vêm conversar comigo sobre a música falam sobre a "negona" que faz o vocal. de como eu "que sou tão pequenininha" consigo cantar aquilo. "de onde é que sair tanta voz" etc etc etc.
bom, como na versão do Pulse temos duas negras, talvez isso justifique a errônea crença de que a mulher que vez sozinha o solo original seja negra. não, pessoal.
ela é uma branquela.

e  acho essa fala sempre sintomática porque ao mesmo tempo em que ela quer enaltecer que "pretos são naturalmente ótimos cantores", elas reproduzem um preconceito - sem saber, na maior parte das vezes - de que "preto só serve pra isso".
não pessoal. todo ser humano é capaz de tudo. rs
tanto os brancos de vocais surpreendentes - e aqui não quero mesmo negar a contribuição negra para a música popular mundial, eles DE FATO são inspiração e tem muito talento nisso.
mas o negros são capazes de atividades outras das mais diversas com êxito e louvor. - desde que as mais abstratas, intelectuais...
então, sim.
Clare é branca. e canta. bem.

e eu sou pequena e boto aquilo tudo pra fora.

e eu me sinto uma privilegiada por ter aceito o desafio, esse. é o espaço do show feminino por excelência e há muito tempo venho trazendo como inspiração para o berro toda essa energia milenar do feminino oprimido e queimado na fogueira.
ouvi há pouco que a minha versão é mais "sensual" que a de Clare. Não há uma intensão numa sensualização, mas há sim a lembrança do gozo. Sim, o gozo feminino tanta vezes julgado, proibido, coibido - desconhecido tantas vezes pela própria mulher.
poder encarnar isso no palco é de uma responsabilidade muito grande. nosso grito de dor e de liberdade. de angústia e de prazer. de fúria e de paixão.
e ao lado na parceria, tenho comigo sempre uma forte mulher: aos teclados Stéfanny Rezende e outrora, Renata Diniz.

as vezes aproveito pra tentar fazer discurso entre uma parte e outra. rs, quase nunca sou ouvida.
"só a luta muda a vida", quando da greve dos metroviários, ou "meu corpo/meu útero minhas regras" no último show em BH, quando do calor da hora da PL 5069.
mas não importa. estou de corpo e alma ali. e canto e grito.

gratidão à Clare Torry pela inspiração.
feliz aniversário.
Vida longa.


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Clare Torry