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quinta-feira, 5 de novembro de 2015

nunca estivemos em ítaca.

hoje, dani, te levei pra andar pelas ruas de beagá. frequento esse chão há tantos anos, bem antes mesmo de me entender por gente, mas poucas vezes havia devotado caminhada e suor pra essa cidade, como outrora fiz com teu canto aí no sul - nesse lugar onde se descobre o frio que habita dentro da gente.
um calor, um mormaço num lugar onde os prédios se avolumam e a brisa quase já não passa. mas ainda assim muito verde. o verde da praça que chamam liberdade e que acolhe gentes todas. caminhantes, estudantes. hoje mesmo vi dois meninos semi nus nuns de seus chafarizes. e os vi porque avistei os dois guardas municipais acabando com a festa da liberdade dos corpos naquele monte de água pública. na noite anterior fora teus versos que me fizeram companhia pros desassossegos que o sol em escorpião me reviram dentro da alma. hoje sentamos noutra praça-calçadão e proseamos com amizade de velha data - passando a limpo os tempos. ouvindo histórias do ontem que nos constroem no hoje. hoje chorei a agonia de não saber. mas dani, hoje caminhamos. você dentro da bolsa rasgada adentrou um prédio-galeria, pelo qual sempre havia passado e nunca adentrado. desses que há pouco conheci em são paulo com seus sambas e vinis, numa fresta de tempo e espaço. uma lacuna de resistência a um tempo que massacra, mas sem deixar de acompanhar essa vida pulsante e jovem que vibra num centro de cidade. era tanta cor, tanta gente bonita, diferente. era marrom. era de-verdade. o prédio antigo.
foi na mesa bem na encruzilhada que sentamos. eu você e ele, que me levara ali, dani. ele é desses moços que tem gosto do marrom. tem um riso fácil. uma sapiência delicada e sutil, disfarçada num olhar fugidio e profundo,e meio maroto. no sotaque arrastado. o encontrei me fotografando e desde então assim tem sido. mas o menino que se mascara com vestes de onça me mostra o óbvio com o sorriso de quem só faz o que é preciso e assim o é-menino, com a calça larga, a camiseta regata-homem das responsas, dos trampos. é um encanto que eu desvelo em silêncio e ele mal sabe das coisas importantes que ele me lembra de mim. que os rabiscos da sua parede me revelam lições importantes que me salvariam dessa agonia que me toma os dias, não fosse eu tão viciada nessa de sentir dor. ele é leve. mas uma leveza de quem sente dentro todo o peso. menino do cárcere e por isso, livre de dentro pra fora.
hoje dani, dançamos à luz lilás de luminosos na parede que delineavam rabiscos feministas. a noite era de rinha de MCs. mulheres do verbo e do ritmo. poesia. ação. eram tantas. tão belas. beagá me saudou no seu melhor. tinha suor. tinha vida. tinha luta. e estávamos lá.
enquanto te conto ainda sinto o gosto doce do afeto que me acende por dentro. depois de tanto machucado, por dentro, por fora. tanto descuido. tanto medo, hoje eu durmo com o gostoso que é sentir o fogo do gostar por dentro. uma cidade nova se abre. me reencontro com meu canto que gosta com a paciência eremita. ainda assim, tudo solto na plataforma do ar, mas hoje quis te contar, porque parece que me fiz alice das páginas de tuas maravilhas, dos teus versos que captam o entre do tempo e das coisas. é nessa fresta que amarra os dias e as coisas que esse dia se fez, que esse afeto se dá. peguei na sua mão e mesmo sem estar em ítaca, hoje eu me rabisquei na tua navegação, justo aqui nessas montanhas e bem longe do mar.